segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O quê vale mais?


Eu trabalhava em uma instituição financeira como gerente de uma carteira de grandes investidores. Era bem conceituada e premiada pela superintendência e também querida, respeitada e presenteada pelos meus clientes. Isso era o que mais me motivava.
O trabalho era muito estressante. Além de ter que manter os quase 500 clientes que compunham a carteira, num mercado à época turbulento, eu ainda tinha que captar novos investidores para cumprimento de metas e também  fazer investigação competitiva, para conhecer a concorrência.
Estudava muito, tinha que me manter super bem informada sobre o que acontecia pelo mundo e que pudesse afetar a economia e, consequentemente, o mercado financeiro.
Eu tinha horário para começar e nunca para terminar o meu dia de trabalho. Mas eu amava o que fazia.
Certa feita, me indicaram um cliente novo, meio esquisitão. Ele tinha uma grande soma com sete dígitos, em uma operação prefixada a prazo certo. Vencia no dia 19 de cada mês.
Na primeira vez que eu o atendi, chamei-o de senhor, como o protocolo exigia, mas ele logo me corrigiu: - Meu nome é Edvaldo. Não precisa do senhor.
- Pois não, senhor Edvaldo...
Ele não se conformava e me corrigia sempre, tentando buscar intimidade. Também fazia questão de negociar a operação pessoalmente. Não aceitava fazê-la por telefone e não suportava esperar a sua vez de ser atendido. Era muito ansioso.
Já conhecendo o seu perfil difícil, eu me preparava antecipadamente para atendê-lo e sempre o fazia com hora marcada, para evitar problemas.
Todas as vezes, sem nenhuma exceção, ele brigava por milionésimos de percentual e ameaçava retirar o seu dinheiro da instituição, caso eu não conseguisse a taxa que ele queria.
Eu tinha que recorrer à superintendência, que recorria à mesa diretora que centralizava nacionalmente esse tipo de operação. Era um desgaste tamanho e muito tempo dispendido. Mas eu sempre conseguia concluir de acordo com a pretensão dele. Ele ficava satisfeito e eu ficava exausta. Ao ir embora, sempre fazia algum elogio. A princípio sobre a minha capacidade, depois passou a ser pela inteligência, em seguida pelo físico e assim foi acontecendo e eu me esquivando.
Após alguns meses de atendimento ininterrupto, o Sr.Edvaldo me liga dizendo, sem nenhum rodeio, que queria passar um fim de semana comigo, em algum hotelzinho num lugar afastado, para me agradecer por tudo o que eu fazia por ele. Usou um palavreado de baixo-calão e extremamente ofensivo.  Fiquei pasma! Passei a ter horror a ele.
Os telefonemas não paravam, eu não sabia mais o que dizer para contê-lo. Entrei em pânico no dia 18 seguinte, já sabendo que no dia subsequente eu teria que encará-lo e não tinha como evitar.
Uma colega, também gerente de investimentos, percebeu o meu descontrole e veio conversar comigo. Completamente envergonhada, eu desabafei e me senti incompetente ao confessar que tinha perdido o controle da situação. Eu estava sendo assediada.
Demonstrando amizade, num meio competitivo e muitas vezes desleal, ela se prontificou a estar presente todas as vezes em que o tal Edvaldo comparecesse na agência.
De nada adiantou. Assim que chegava, no seu horário marcado, e com a minha colega a postos, ele pedia que ela desse licença porque a transação era confidencial. Ele se recusava a ser atendido em conjunto e continuava ameaçando retirar todo o seu investimento. Eu sofria moralmente com tudo aquilo e comecei a ficar abatida. Ninguém imagina como dói a alma,  só quem já passou por essa situação.
Foi então que um golpe foi dado. Em determinado dia 19, enquanto eu já estava tentando negociar a taxa para a operação do sr Edvaldo, meu chefe entra na minha sala e lhe diz calmamente:
- Bom dia, Sr Edvaldo. Eu vim lhe informar que hoje nós não vamos lhe conceder a taxa que o senhor espera. Só podemos lhe pagar tanto. E informou um percentual irrisório.
- Com essa taxa eu não fecho! Vamos aguardar que ela sempre consegue o que eu quero.
- O senhor não está entendendo, sr. Edvaldo. O senhor não vai ter o que quer. Vou mandar preparar um cheque administrativo para que o senhor possa levar o seu dinheiro, porque sei que não vai aplicar mais conosco.
Em poucos minutos entregou o cheque ao famigerado cliente, que foi-se embora sem contestar porque havia entendido tudo.
Nesse dia eu me senti orgulhosa de ser gerenciada por um grande homem e agradecida pela colega que discretamente me ajudou. Nenhum dos dois nunca comentou o assunto comigo. Não quiseram me constranger ainda mais.
Fiquei feliz ao voltar a ter a certeza de que a honra, a dignidade e o caráter ainda valem mais do que o dinheiro.


8 comentários:

Unknown disse...

Que situação complicada esta... e com certeza muito desgastante para você. Deve ser muito ruim quando pessoas confundem profissionalismo com algo a mais.
Este seu post foi muito importante para provar que ainda existem pessoas prestativas para nos ajudar e o que acho curioso é que estas ajudas geralmente nada tem a ver com laços de sangue.

Célia disse...

Há canalhas de todo tipo: pobre, endinheirado, sem caráter, em altos postos ou perdidos em plena rua... Mas, felizmente ainda podemos ter esperança de seres íntegros e defensores da moralidade e de assédios nojentos!
Que bom que sua história teve um final feliz. Na educação também me deparei com isso: um certo pai veio com um estojo de jóias para que eu escolhesse e assim não reprovasse seu filho! Preparei o meu bote e sorrateiramente levei-o até à sala da direção da escola onde comuniquei ao diretor a proposta do pai e deixei-os em negociação! Indignado com minha atitude o pai foi embora e o filho reprovado! Abraço da Célia.

Unknown disse...

Nossa, que bom ter amigos assim!

CEM PALAVRAS disse...

Christian,
É uma situação dolorosa qualquer mulher. É humilhante e a gente sente vergonha de dividir o que acontece. Muitos iriam dizer que a culpada era eu por ter dado bola. Vivemos ainda numa sociedade machista em que os homens acham que podem tudo e que as mulheres é que são culpadas por sofrerem assédio. Principalmente nesse tipo de trabalho. Ainda bem que fui amparada por essas duas pessoas de bem.
beijos

CEM PALAVRAS disse...

Célia,
Você foi forte, enfrentou de peito aberto. Eu sofria pressão por metas.
Tentei contornar a situação, levando em banho-maria, para não perder o cliente - um grande investidor.
Mas se tivesse enfrentado com a coragem que você teve, com certeza teria perdido o emprego. Confesso que fui covarde.
muitos beijos

CEM PALAVRAS disse...

Wal,
Duas pessoas que demonstraram uma verdadeira amizade e respeito por mim. Grandes figuras!
beijos

Edu O. disse...

Nossa, que história!! Ainda bem que no final tudo foi reslvido com coragem e afeto para você.

CEM PALAVRAS disse...

Edu,
E também muitos lexotan, kkkkk